Isaac


Um pouco de história:

        Há alguns anos eu peguei no instituto Goethe aqui em Montreal um pequeno livro chamado Der Sonntag, an dem ich Weltmeister wurde (do escritor Friedrich Christian Delius, editado pela rororo). Pelo título e pela capa, eu imaginei que fosse um relato sobre a conquista do campeonato mundial de futebol na Alemanha em 1974. Não poderia estar mais enganado. Primeiro que se tratava do campeonato de 1954, disputado na Suíça. Segundo que o futebol era só um pano de fundo para uma história muito mais envolvente e muito mais complexa do que uma simples narrativa futebolística. É a história de um menino que "desperta para o mundo" bem durante a disputa daquele campeonato. Há diversas passagens memoráveis e dignas de nota, mas uma em especial me chamou a atenção: era a parte onde o menino se compara a Isaac, fiho de Abraão. Fiquei tão impressionado que resolvi traduzir esse trecho para o português, para que outras pessoas pudessem usufruir também um pouco desse livro. Publiquei minha tradução na lista de discussão da Bras-Net e obviamente choveram comentários sobre esse trecho, alguns favoráveis, outros nem tanto... Transcrevo abaixo a minha tradução, então, para sua apreciação... Note que em alemão o texto era todo corrido, só havia vírgulas separando as frases, nenhum outro sinal de pontuação. Eu acrescentei alguns pontos-e-vírgulas e pontos-de-interrogação para deixar a tradução um pouco mais clara, mais fácil de entender.


E agora, a história:

        Eu era Isaac, o filho; o pai agarrou seu filho e pegou a faca, porque o seu Deus havia comandado que ele abatesse o seu filho; eu vi Isaac com os olhos aterrorizados na litogravura da Biblia ilustrada de Schnorr von Carolsfeld; eu era Isaac, amarrado, ajoelhado, amedrontado, apertado pelo pai Abraão, seguro pela mão esquerda do pai, enquanto a direita levantava a faca de cabo muito largo e lamina pontiaguda; Isaac não conseguia compreender: o pai iria apunhalá-lo; eu não conseguia compreender: que Deus é esse, que ordena uma tal coisa? Que pai é esse que obedece sem réplica uma tal ordem? Eu estremecia, eu sangrava, via-me queimar no altar, na pilha de lenha; eu não entendia o que me acontecia, e mesmo se meu pai não era nem um pouco parecido com Abraão, sem barba, sem cabelos compridos, sem roupas feitas de tecidos estranhamente enrolados, e mesmo se sacrifícios na pira não fossem mais costumeiros, ele era o pai e eu era o filho, com Deus acima de nós dois, e eu sabia tão pouco quanto Isaac que tipo de orações o pai mantinha com o Senhor seu Deus, quão estreita era a relação dele com esse Ser, que tudo sabia, tudo podia, tudo previa; eu não sabia se meu pai recebia comandos e instruções diretas do Senhor nos Céus como as grandes figuras do Antigo Testamento; eu não temia realmente ser apunhalado por meu pai, mas bastava imaginar a cena, escutar a estória da Biblia, dar uma olhadela na litogravura para dizer: aí está um Deus, um Deus amado, que exige do seu mais devoto e prestativo fiel que ele apunhale o seu próprio filho; aí está um pai que cumpre ou quer cumprir essa ordem sem questionar e sem resmungar, um pai que faz o filho carregar a lenha, que mente para o filho quando este pergunta sobre o animal a ser sacrificado, que amarra o filho e o força a ir até o altar (altar que é ao mesmo tempo pira e local do sacrifício), um pai que estendeu sua mão e pegou a faca para apunhalar o seu filho; não fosse pelo anjo que aparece no último instante e salva o filho; um pai que ainda é elogiado, "porque agora Eu sei que você teme a Deus e não poupa seu único filho por Minha causa"; este é o final feliz, um carneiro é abatido e queimado, mas onde está o filho? O que pensa o estarrecido Isaac? O que pensei eu? Como é que eu posso me sentir seguro e cuidado e protegido diante da "alegre mensagem" de um Senhor que exige do meu pio pai semelhantes provas? Quão longe iria meu pai numa situação como esta? Seria Deus mais caro a ele do que seus filhos, do que eu? Não está escrito em algum lugar na Biblia: "aquele que ama mais a seu filho ou filha do que a Mim, este não é digno de Mim"? E porque somos todos acordados de manhã cedinho no dia do aniversário pela família toda (vestida em seus pijamas ou roupas do dia-a-dia) com o coral "Louva ao Senhor", uma canção que, pelas suas referências ao nome de Abraão e 'as tribos de Abraão', nos faz lembrar da diferença entre pai e filho? Meu pai tem o coral e o poder do lado dele, a faca aos domingos para cortar o guisado; várias vezes ele me bateu com a mão no traseiro ou com a sandália nas pernas, até que eu gritasse e gritasse e ele achasse que a mentira ou o pequeno roubo tivessem sido suficientemente punidos; ou ele combinava com a mãe se eu deveria receber cinco ou dez ou vinte tapas e levava a cabo o decidido não se importando com meus soluços e gritos; quão longe iria a violência, "para que ele abatesse o seu filho"? Nós vivemos em outros tempos, abatidos são os porcos na fazenda, puxados pela orelha e tirados do estábulo com forcados; o açougueiro anestesia o porco com uma injeção, abre o corpo do porco e crucifica-o de cabeça para baixo; nós pagamos ao senhor Mucke (um fugitivo da Silésia) algumas moedas, para que ele abata coelhos e galinhas para nós, mas apesar disso eu via a faca na mão do pai e não conseguia nem imaginar uma faca de abatedouro nas mãos dele; que Deus é esse, que tortura os filhos dos devotos com a idéia de que a qualquer momento eles podem ser abatidos, só porque o Senhor dos Ceus e da Terra desconfia da fidelidade da sua congregação? Que Deus é esse que proíbe toda mentira e aqui obriga o pai a mentir? Que Deus é esse, que tortura também os pais porque pode comandá-los a abater seus próprios filhos, como se não houvesse nenhuma outra prova do temor a Deus? Que alegria sente o grande e cruel Invisivel que exige mortes como prova de amor? O anjo chegou muito tarde, a faca pontiaguda não escapa da mão do pai, Isaac não se protege; ainda nesse momento em que ele entende (ou talvez não) a situação ele procura proteção na poderosa figura do pai; o anjo chegou muito tarde, impossível silenciar a dor agora, eu vejo a faca no coração de Isaac, vejo-o sangrar, vejo-o morto, e o anjo que pairava nas encostas da montanha segurando o carneiro (que era o substituto para o filho) pelos chifres com uma mão, colocou protetoramente a outra mão na cabeça de Isaac e parou o impulso do pai que queria apunhalar; o anjo chegou muito tarde, o abominável já havia acontecido; embora o assassinato ainda tivesse sido evitado, o abominável fôra o jogo de crueldade, o jogo com a vida da criança, a cruel vontade de atormentar de um Todo-Poderoso e a triste obediência de um de seus servidores, o abominavel foi que o terror da criança nao teve nenhum papel nessa história e para mim sobrou somente o terror.


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Esta página foi atualizada pela última vez em 27 de janeiro de 2000
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